É provável que você já tenha ouvido por aí que comida industrializada “não presta”, que é “lixo” e que deveria priorizar os alimentos naturais. Essa mensagem tem seu fundo de verdade, mas o fato é que o excesso de informação sobre alimentação muitas vezes mais nos confunde do que nos ajuda. Afinal: você realmente escolhe o que come? Ou a propaganda, os rótulos atraentes e, sobretudo, as redes sociais, têm moldado as suas decisões e hábitos alimentares?
A fim de esclarecer algumas das dúvidas mais comuns nesse sentido, conversei com a nutricionista Mariana Ribeiro, nutricionista e analista de pesquisa do Programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Idec (Instituto de Defesa de Consumidores).
Recentemente, o órgão lançou um documentário bastante esclarecedor sobre a publicidade de alimentos e todo o marketing dos produtos ultraprocessados, que muitas vezes influenciam a compra e, consequentemente, a rotina alimentar das pessoas. Vale a pena conferir.
A seguir, acompanhe os principais trechos da entrevista, que inclui não só as mensagens enviadas pela mídia quanto as que recebemos por meio dos influencers nas redes sociais.
Alimentação ‘fit’ e redes sociais: como a propaganda influencia suas escolhas
Dani Barg: Muitos consumidores acreditam que produtos com rótulos como “natural” ou “fit” são necessariamente saudáveis. Quais seriam as dicas práticas para interpretar melhor essas informações e fazer escolhas mais conscientes?
Mariana Ribeiro: A resposta é sempre a leitura dos rótulos. Para ser mais específica, a lista de ingredientes. Muitas vezes a informação que está na frente tem mais destaque, é mais colorida e tem apelo publicitário. Mas a informação mais confiável é a lista de ingredientes. É ali que sabemos o que de fato compõe o produto.
Por exemplo: muitas vezes um produto tem a imagem de uma fruta. Quando você lê a lista de ingredientes a fruta não está lá, o que ele tem é um aroma da fruta. Também vemos palavras de destaque nos rótulos. Mas o que é ser ‘fit’? O que é ser ‘natural’? São palavras muito utilizadas, mas não temos normas previstas sobre o que o produto precisa ter para apresentar aquela informação. Então, por mais que o rótulo frontal, onde estão todas essas informações, tenha todo esse destaque, sempre vale a pena dar um 360 e procurar pela lista de ingredientes, que geralmente fica na parte de trás ou na lateral.
DB: Existe alguma dica específica para facilitar a leitura do rótulo?
MR: Existem sim algumas orientações principais. Priorize aqueles produtos que você conhece os ingredientes e evite aqueles considerados ultraprocessados. Uma forma de identificar se aquele produto é um ultraprocessado é ver se há aditivos alimentares. Alguns estudos já demonstraram que o a maioria dos ultraprocessados têm pelo menos um edulcorante, o que popularmente identificamos como adoçante, corante ou aromatizante. Então uma dica é: se tem aromatizante, corante ou edulcorante na lista de ingredientes, aquele produto é um ultraprocessado. Ou seja, está naquela categoria que o nosso Guia Alimentar recomenda que seja evitada.
A estratégia por trás da imagem: como as redes sociais moldam sua percepção de ‘saudável’
DB: De que maneira as redes sociais contribuem para a disseminação destes mesmos produtos, que são vendidos como “saudáveis”, e como isso afeta a percepção das pessoas sobre alimentação equilibrada?
MR: As redes sociais têm um papel muito importante. E não só elas, mas acredito que o ambiente digital como um todo e como ele é usado nos dias atuais. Pensando, por exemplo, em algumas publicidades. Quando vemos influenciadores consumindo determinado produto, alguém que muitas vezes é idealizado, usado como um exemplo, uma inspiração; isso afeta muito a nossa percepção.
Existe a publicidade que as próprias marcas e empresas realizam individualmente e também as parcerias. Muitas vezes essas parcerias são feitas com pessoas que vendem um estilo de vida saudável e uma ideia de alimentação. O produto acaba entrando nisso e nos leva a pensar: ‘se aquela pessoa que é saudável, pelo menos ao meu ver, nas redes sociais, consome determinado produto, então faz sentido eu consumir isso também se eu quero ser saudável’.
Isso traz uma contação de história sobre o que é saudável, sobre esse estilo de vida. Não é o produto por si só, ele é sempre colocado num determinado contexto pra você ver a partir de uma perspectiva. Então fica até difícil pensar e questionar, porque aquilo faz sentido, parece tão claro que aquilo é saudável. E aí junta isso com a publicidade de um rótulo que me dá toda uma impressão de saudabilidade. Esse combinado de estratégias faz com que a população acredite que, de fato, se trata de um produto saudável.
Scroll, comparação e culpa: como isso afeta sua alimentação
DB: Como a comparação com influenciadores digitais que exibem dietas “perfeitas” nas redes sociais pode impactar negativamente a relação das pessoas com a comida e sua autoestima? E como sair desse ciclo de comparação?
MR: Temos inúmeros dados demonstrando o quanto é prejudicial essa comparação com o estilo de vida vendido pelos influenciadores, principalmente quando pensamos em alimentação. O influenciador muitas vezes está sendo pago para exibir aquele estilo de vida e mostrar determinado alimento. Muitas vezes eles têm alguém para preparar sua refeição e fotografar. E cada um está em sua realidade, então fica difícil olhar essas vidas perfeitas. Por trás das cortinas não é bem assim, e não sabemos de fato o quanto aquele alimento faz parte da vida da pessoa, e se faz sentido para o outro indivíduo consumir ou não. Mas muitas pessoas que vendem esse estilo de vida saudável estão promovendo produtos de marcas grandes, com marketing muito apelativo, e foram pagas para fazer aquela publicidade.
DB: Qual seria a dica para um consumo mais consciente desse tipo de conteúdo?
MR: Cada vez mais temos visto o movimento do unfollow positivo, e de passar a acompanhar pessoas que falam sobre alimentação saudável, mas de uma forma mais verdadeira. Não tem problema nenhum se inspirar em pessoas que compartilham receitas saudáveis e falam sobre alimentação adequadamente.
Então, é preciso identificar se o conteúdo te faz bem ou mal. Além disso: quem está por trás daquilo? É, de fato, uma pessoa, por exemplo, indo à feira e contando o que ela comprou, os perrengues do dia a dia que enfrentou para para produzir determinada refeição e organizar a rotina? Ou é aquele cenário todo montado, um estilo de vida todo publicizado só para no fim das contas vender um produto ou um curso?
É muito importante ter essa visão crítica sobre as informações que recebemos sobre alimentação e nutrição, e que muitas vezes incorporamos.
Propaganda de alimentos: como ela influencia o que vai para o seu prato
DB: A falta de tempo é um dos desafios para uma alimentação saudável, levando ao consumo de ultraprocessados, que são vendidos como “mais práticos”. Como adotar hábitos alimentares mais saudáveis mesmo com rotinas apertadas?
MR: O compartilhamento das tarefas domésticas relacionadas à alimentação é muito importante. Uma outra estratégia é identificar em quais locais estão sendo realizadas as compras. Quando eu faço compras só em supermercados ou redes grandes, o acesso a ultrapressados é muito frequente, muito constante. Então tem uma tendência maior de comprar e consumir esses alimentos no dia a dia. Agora, quando para além dos supermercados eu também faço compras, por exemplo, em feiras livres, são locais onde há uma disponibilidade maior de alimentos saudáveis e que, por consequência, vão ser levados pra minha casa e vão ser consumidos. O que vai estar em casa vai determinar muito o que eu consumo.
DB: O preço dos ultraprocessados muitas vezes torna esses produtos a única opção viável para muitas famílias. Como podemos equilibrar a acessibilidade financeira com escolhas alimentares mais saudáveis?
MR: Já tem alguns estudos que indicam que quando comparamos o preço de frutas, verduras e legumes, em supermercados e em feiras livres, nas feiras eles são mais baratos. A inflação e o aumento de preços é de fato é uma realidade. Por isso é interessante pensar em estratégias de locais que a comercialização dos alimentos saudáveis sejam mais baratos. Algumas pessoas também têm contato direto com produtores, ou estão em grupos de consumo que o produtor leva a mercadoria até a pessoa, com cestas de produtos saudáveis. E quando a gente pensa principalmente na feira, ao longo do período que ela acontece os preços também mudam. Se for um pouquinho mais tarde, existe uma tendência dos preços estarem um pouco menores. É uma estratégia interessante pra garantir alimentos saudáveis num custo melhor.
De olho na lupa e nos rótulos: escolher o que comer ficou mais fácil?
DB: O Brasil passou recentemente por um processo de mudança de rotulação, com a entrada da “lupinha”. Já dá pra medir o impacto disso?
MR: A mudança começou a entrar em vigor em 2022, então ainda não tem dados. Mas o que a gente percebe, apesar de ainda não terem estudos, é que a lupa está sendo cada vez mais conhecida pela população e que ela também tem sido mais usada. As pessoas se referem mais à lupa, e criam até memes. Isso mostra o quanto já estão se tornando familiarizadas. É um avanço interessante porque, de uma forma rápida e clara, é possível saber quais produtos têm uma alta quantidade de determinado nutriente.
Outra coisa muito perceptível pelo movimento que as discussões têm tomado nos últimos tempos é que as pessoas estão lendo mais os rótulos. Tem toda a polêmica que surgiu de produtos como “preparo sabor café”, fingindo que é café, por exemplo. As pessoas estão lendo e falando mais. Então a lupa é um primeiro impacto. Há mais mais informações sobre o que estão de fato consumindo.
DB: Nos últimos anos, vimos também uma demonização dos alimentos industrializados, principalmente por conta do boom de blogueiras/influenciadores que vendem esse suposto estilo de vida “saudável”. Só que o Brasil é muito desigual, e têm pessoas que realmente não têm acesso ou tempo para bancar/fazer uma alimentação 100% natural. Qual é a recomendação nesse sentido?
MR: Conforme as pessoas têm acesso à informação, elas podem fazer melhores escolhas. Novamente, o local onde eu realizo minhas compras é muito importante, porque isso vai determinar o que eu vou encontrar no momento da compra. E dentro da faixa de preço que eu posso comprar, observar a lista de ingredientes e priorizar os produtos que tiverem a menor quantidade ou que não tiverem esses aditivos alimentares. É muito importante olhar a alimentação como um todo e garantir que na maior parte das refeições se consuma alimentos in natura ou minimamente processados.
Publicidade enganosa: como denunciar e fazer sua parte como consumidor
DB: Por fim, queria que você me falasse um pouco sobre o OPA. Explica um pouco como funciona?
MR: O OPA é Observatório de Publicidade de Alimentos, uma iniciativa do Idec, realizada com parceiros. Tem como objetivo fazer a ponte entre uma denúncia encontrada pelo consumidor e os órgãos competentes. Então, qualquer tipo de publicidade de alimentos e bebidas que cause dúvida, incômodo ou traga algum questionamento, o consumidor pode fazer essa denúncia pelo OPA, que concentra um banco de denúncias. Internamente, a equipe avalia e identifica quais serão encaminhadas e para quais órgãos. Esse movimento é muito importante porque por meio dessas denúncias é possível mapear o tipo de publicidade que está atingindo a população.
Por exemplo, nessa linha dos alimentos “fit”. O OPA tem uma denúncia de um biscoito da marca Nesfit que é de aveia e mel, tem a imagem do mel no rótulo, mas não tem mel. Quando a publicidade engana é importante que seja documentada para que os órgãos competentes recebam esses casos e tomem uma conduta adequada para a população.
Um outro caso muito interessante é da linha Kids, do produto da Kibon, que vinha com um selo, escrito: “desenvolvido com nutricionistas, feito para crianças”. E aí, pelo OPA, enviamos um ofício para o CFN, né, que é o Conselho Federal de Nutrição. O CFN fez uma reunião com a marca e eles retiraram o selo do rótulo. Conseguimos de forma rápida tirar esse selo, que era enganoso e abusivo pra população. Particularmente por ser nutricionista, pra mim é o caso que eu mais gosto do OPA.
Para saber mais, visite o site do OPA e aqui o insta da nutricionista Mariana Ribeiro.
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